sábado, 30 de maio de 2009

Velas acesas ao sol


Os olhos escondem segredos,
Os ouvidos sempre atentos,
A boca revela poucas palavras,
As perguntas ocupam os silêncios.

Espero o momento em que falaremos dela.
Sobre os medos, os sonhos, os desejos.

A noite, no escuro do quarto iluminado por velas,
Posso ouvir de longe , as conversas com o vento,
As rezas com os santos,
E o arrastar dos pés descalços.

Na luz do dia, ela observa , escuta ... Se cala.
As velas continuam acesas diante do sol.
A casa florida e seu olhar inesquecivel.
Nas conversas em sigilo, sou eu que falo dos meus conflitos,
Da última vez , quase consegui ler seus pensamentos.

Sua fé rege o caminho.
Ela é a guia.
Enxerga os dias que nos esperam, sem medo, sem dúvida.

E eu a observo, com plena admiração.
Com desesperada e agonizante devoção.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Do Futuro



Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.
Hoje está um dia de nada. Hoje é zero na hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim. eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncios dentro de mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.



Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

"Não entender era tão vasto que ultrapassava qualquer "entender".
Entender era simples e limitado. Mas não entender não tinha fronteiras e levava ao infinito,
a Deus...
...Não era um não-entender como um simples de espírito.
O bom era ter uma inteligência e não entender.
Era uma benção estranha como a de ter uma loucura sem ser doida.Era um desinteresse manso
em releção às coisas do intelecto, uma doçura de estupidez.
Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o suficiente para ao menos ter consciência daquilo que ela não entendia.

Embora no fundo não quisesse compreender.

Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que pensara que se compreendera era por ter compreendido errado.
Compreender era sempre um erro - preferia a larguesa tão ampla e livre e sem erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que estava em plena condição humana.

No entanto às vezes adivinhava.

Eram manchas cósmicas que substituiam entender"


Clarice lispector in "Um aprendizado ou o Livro dos Prazeres

terça-feira, 26 de maio de 2009

Krajcberg






um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos leva sempre aos mesmos lugares.

É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Das Flores




1.
bijuteria que as árvores usam quando querem ir a festas; 2. fragmento perfumado do arco-íris; 3. a namorada do beija-flor; 4. apelido do cheiro da boca da pessoa amada; 5. para os monarquistas, a rainha do Reino da Primavera; 6. cupido dos gametas; 7. the power; 8. o adeus com pétalas; 9. ser não adaptável à vida em redomas; 10. se vermelha, em grupo e andando de moto, símbolo de paixão; 11. o castelo de Androceu e Gineceu; 12. se misturada à água, espeto para olho-gordo; 13. a compensação ao espinho. (Ex.: “Perdoa, amor, a insensatez, e recebe essas flores com o sorriso da certeza, e acaricia com seus olhos a saudade que trago inteira e ofegante em minha companhia.”)

André Gonçalves in Coisas de Amor largadas na Noite.

segunda-feira, 18 de maio de 2009







Escrevia
silêncios, noites, anotava o inexpressável. Fixava vertigens.

Rimbaud

Dos sonhos







Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo doeu-me onde antes os teus dedos foram aves de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração que era o resto da vida - como um peixe respira na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes:
tudo o que vem de ti é um poema.
C
ontudo, ao acordar, a
solidão sulcara um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos, mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Comida






Bebida é agua

Comida é pasto

Você tem sede de que?

Você tem fome de que?

A gente não quer só comida,

A gente quer comida, diversão e arte

A gente não quer só comida,

A gente quer saída para qualquer parte

A gente não quer só comida,

A gente quer bebida, diversão, balé

A gente não quer só comida,

A gente quer a vida como a vida quer

Bebida é agua

Comida é pasto

Você tem sede de que?

Você tem fome de que?

A gente não quer só comer,

A gente quer comer e quer fazer amor

A gente não quer só comer,

A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro,

A gente quer dinheiro e felicidade

A gente não quer só dinheiro,

A gente quer inteiro e não pela metade



Desejo

Necessidade

Vontade






quarta-feira, 13 de maio de 2009

"Eu estou ensaiando uma postagem a semana inteira .
É uma foto minha na estréia da peça 'O santo e a porca'
Eu olho os olhos do meu personagem e fico procurando por mim e o que eu sentia enquanto
dava o texto...

...Era uma coragem grande e uma ousadia que eu não encontro aqui dentro agora
Eu sinto saudade da estréia nervosa e da platéia lotada.
Quando eu sentir a coragem de novo aqui dentro, vou postar a foto...
"Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma.
Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.


Quase quatro anos me transformaram muito.
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas.
Você já viu como um touro castrado se transforma em boi?
Assim fiquei eu...


Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim.
E com isso cortei também a minha força.


Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver.
Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer.


Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige.

Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber.

Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma.”



Clarice Lispector (1947 Berna - Suiça /Carta à irmã)

segunda-feira, 11 de maio de 2009




“Amigos morrem,

as ruas morrem,

as casas morrem.

Os homens se amparam em retratos.

Ou no coração dos outros homens”

* Ferreira Gullar*

"Jogando pelo caminho a casca inútil das horas..."


Presente de meu amigo anônimo que me manda sempre lindos posts...



SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS



A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,eu nem olhava o relógio.
Seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.



Mario Quintana ( In: Esconderijo do tempo)

domingo, 10 de maio de 2009


"Agora, ao final de nossas andanças, nossos olhos são outros, olhos de velhice,
de saudade. 'Toda saudade é uma espécie de velhice'.
É por isso que os olhos dos velhos vão se enchendo de ausências.
'Memória fraca', dizem os jovens.
Engano: é que a sua alma sabe o que merece ser lembrado.
Esquecem-se do que aconteceu ontem, mas se lembram do
que aconteceu há muito tempo, como se fosse hoje."


[Se eu pudesse viver minha vida novamente - Rubem Alves]



" Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada. Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro... "

[Clarice Lispector]

sábado, 9 de maio de 2009

Enquanto houver você do outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar.

A cena repete, a cena se inverte, enchendo a minh'alma d'aquilo que outrora eu deixei de acreditar.

Tua palavra, tua história, tua verdade fazendo escola e a tua ausência fazendo silêncio em todo lugar.

Metade de mim agora é assim.

De um lado a poesia, o verbo, a saudade. Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim. E o fim é belo, incerto.

Depende de como você vê o novo, o credo, a fé que você deposita em você e só.

Só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você.

Só enquanto eu respirar.

O Teatro Mágico

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Da solidão

Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras.
Sou irritável e firo facilmente.
Também sou muito calmo e perdôo logo.
Não esqueço nunca.
Mas há poucas coisas de que eu me lembre.





Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo,
não sei me entregar à desorientação.

domingo, 3 de maio de 2009

Do Chão

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre um chão de giz
Ah, meros devaneios tolos a me torturar!
Fotografias recortadas em jornais de folhas, amiúde...
Eu vou te jogar num pano de guardar confetes
Disparo balas de canhão
É inútil pois existe um grão-vizir
Há tantas violetas velhas sem um colibri
Queria usar, quem sabe, uma camisa de força ou de vênus
Mas não vou gozar de nós apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom
 
Agora pego um caminhão, na lona vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado no seu calcanhar
Meus vinte anos de boy, that's over baby! Freud explica
Não vou me sujar fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar gastando assim o meu batom
Quanto ao pano dos confetes, já passou meu carnaval
E isso explica por que o sexo é assunto popular.
No mais estou indo embora, no mais estou indo embora



a música que inspira: Chão de Giz, Zé Ramalho.

o escritor: Eugénio de Andrade

Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita algumas moedas ou um elogio em troca de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente o doce veneno da vaidade no sangue e começa a acreditar que, se conseguir disfarçar sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de garantir um teto sobre sua cabeça, um prato quente no final do dia e aquilo que mais deseja: seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente vai viver mais do que ele. Um escritor está condenado a recordar esse momento porque, a partir daí, ele está perdido e sua alma já tem um preço.

. Carlos Ruiz Zafón in O jogo do Anjo .

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Eu a compararia com um sol negro se pudéssemos conceber um astro negro que vertesse luz e felicidade. Mas ela lembra mais facilmente a lua, que sem dúvida a marcou com sua temível influência; não a lua branca dos idílios, semelhante a uma noiva fria, mas a lua sinistra e embriagante, suspensa ao fundo de uma noite tempestuosa e empurrada pelas núvens que correm; não a lua mansa e discreta a visitar o sono dos homens puros, mas a lua arrancada do céu, vencida e revoltada, que as Feiticeiras tessálias obrigam duramente a dançar sobre a relva apavorada! {…} Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e desfrutá-las; mas esta dá vontade de morrer lentamente sob seu olhar”

. Charles Baudelaire in Pequenos Poemas em Prosa .

Para lavar a alma